Mentalidade elitista?

Quando me mudei para o Reino Unido algumas coisas bem “brasileiras” – de mentalidade comum na classe média e elite brasileira – estavam na minha cabeça:

  1. Pessoas formadas que não trabalham na própria área fracassaram por algum motivo;
  2. Em “subempregos” você não precisa de muito além do trabalho braçal;
  3. Não se aprende nada sobre trabalhar na área criativa trabalhando com outras coisas.

Não poderia ter batido a cabeça com mais força quando cheguei aqui e descobri que estava mais errada do que imaginava. E isso me custou muito da minha saúde mental para entender.

Na Europa, em específico na Inglaterra, o que mais se vê é que pessoas trabalham e trabalham em qualquer coisa, sem se importar tanto com diploma. Existe diferença de salários entre quem fez faculdade e trabalha na área? Existe, mas ter um salário mínimo digno por faixa etária ajuda para que mesmo com uma certa diferença entre os salários seja possível viver num país caro como esse – óbvio que isso só vale para trabalhos legalizados.

A ideia de que a gente precisa ter diploma e trabalhar na área depois de ter todas as qualificações é só mais uma maneira de incutir a síndrome do impostor na nossa mente, coisa que eu só parei pra pensar sobre depois de faltar trabalho e dinheiro pra passar o mês e cumprir com meus compromissos.

Conversando com europeus e expressando meu sofrimento quanto a trabalhar em outras coisas enquanto continuava procurando por mais clientes no Velho Mundo, percebi que havia um certo estranhamento quando eu falava que certos empregos eram subempregos por não exigirem formação alguma ou por serem braçais. Tenho uma amiga que estudou na USP que vivia repetindo “o dia que filho de rico quiser trabalhar como assistente de cozinha, diarista, motorista de ônibus, etc. a gente conversa!” e eu concordo que, no Brasil, como existe essa discriminação não tão velada assim, é mais fácil que a pessoa (com alguma condição financeira) fique anos depois de formado sem trabalhar e fazendo um bico ou outro – ou se enchendo de cursos e de dívidas, do que ela trabalhe em alguma dessas posições.

A gente reconhece a exploração e discriminação e, ao invés de lutar pra que elas não existam (porque esses trabalhos são tão necessários quanto qualquer outro), a gente cria oitossentas faculdades populares e satura outros mercados com profissionais diplomados mas sem educação de qualidade. Ou seja, diminui o valor de todas as profissionais a partir de um pensamento elitista e ultrapassado, completamente diferente do que acontece em países desenvolvidos. Isso tudo sem entrar em méritos sociais e de assistência governamental, já que esse não é o intuito do texto.

Quando comecei a trabalhar com outras coisas que não rádio, cinema, animação ou social media, achei que seria um trabalho quase mecânico e que não estaria exercitando a criatividade: aí que me enganei bonito – mais uma vez.

Todo processo, por mais repetitivo que seja, pode ser melhorado e isso exige um esforço e criatividade excruciantes. Dificilmente a gente reconhece a criatividade de trabalhos como o de um motorista (de táxi, ônibus, aplicativo), porque nos fixamos às regras que eles tem que seguir (de trânsito, de taxas), mas um bom motorista sabe que precisa tomar várias decisões a cada rota, ser compreensivo com os passageiros, arrumar soluções para problemas diários – que são muito mais do que o que imaginamos; ou que um atendente de loja de brinquedos tem que saber mais do que decorar preços e nomes/funções de brinquedos, um bom atendente precisa ler os clientes e saber que cada um vai precisar de um tipo de abordagem, precisa pensar rápido para atender as necessidades do cliente e conseguir uma venda, precisa exercitar a criatividade e simpatia (essa segunda muito mais do que na nossa área, inclusive).

Tá, Bibi, mas como a gente usa esse tipo de experiência pra melhorar na área criativa (animação, cinema, rádio, tv, criação de conteúdo, etc)?
É aí que entra a capacidade de ler as experiências. Quer um ambiente mais estressante que uma lanchonete lotada, com vinte pedidos sendo feitos, dois motoboys esperando pedidos – que tem prazos apertados para serem entregues, e um fornecedor na porta esperando pagamento? Tudo isso com 2 pessoas trabalhando dentro da loja pra fazer todas essas funções? Além de exercitar a capacidade psicológica de conseguir lidar com multi- tarefas, essa pessoa tem que saber se organizar para fazer todas as tarefas no prazo definido e de maneira satisfatória – pra que os clientes voltem em outra ocasião.

Já pensou que no dia a dia de uma agência, de uma empresa ou mesmo seu dia a dia como freelancer você tem que executar todas essas funções também? Talvez não lide diretamente com o cliente, mas lida com o chefe, o cordenador, o colega, a agência que te contratou. Talvez não tenha o motoboy, mas um colorista, alguém pra fazer legendagem, alguém pra finalizar – ou talvez você seja o finalizador, mas de qualquer maneira você tem que lidar com múltiplas tarefas para realizar a sua função e outras experiências com estresse, organização, utilizar a criatividade de outras maneiras, sejam exatamente o que você estava precisando para otimizar o seu trabalho como criativo.

Toda experiência é válida, contanto que você se esforce o suficiente para exercitar essas capacidades e consiga ler e entender como isso ajudou você a melhorar na área que você quer seguir.

A criatividade não é propriedade das carreiras criativas e a gente precisa entender e valorizar isso de outras formas também.

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